“Eu seguro minha mão à sua e uno o meu coração ao seu, para que juntos possamos fazer tudo aquilo que eu não posso, tudo aquilo que eu não quero e tudo aquilo que eu não consigo fazer sozinho! (…)” — Autor desconhecido
Esse post talvez não seja exatamente o que alguns de vocês estavam esperando. Peço que, por favor, tenham paciência e me acompanhem nesse rolê, que vai ser muito louco!
Começamos a falar sobre presença, e a importância de estar no aqui e agora. Tivemos um debate bem interessante nos comentários (em um dos grupos de FB que eu participo) e a galera evocou vários exemplos de coisas que costumam fazer pra deixar os jogadores mais imersos no personagem e no mundo (relembrar os fatos, falar sobre os personagens, etc etc). Isso tudo é ótimo — vi exemplos lindos e que me deram várias ideias para aplicar nas mesas em que jogo. Entretanto não são esses pontos que quero abordar.
Chegará o dia , sim, em que vou falar aqui especificamente sobre interpretação, dramaturgia, background e desenvolvimento, tempo de ação, etc, etc. Mas — como diria nosso amigo Aragorn — este dia não é hoje!
Hoje não vamos entrar em exercícios para trabalhar personagens ou o roleplay propriamente dito. Isso porque, algo que percebi — tanto no meu grupo de RPG, quanto nas respostas das mini-pesquisas que fiz com outros jogadores — é que quando se fala em interpretação no RPG nós ainda estamos presos a uma ideia de forma dramática pura (abordarei formas dramáticas em breve) e resultado em detrimento do processo.
O que isso significa?
Todo e qualquer ator (de teatro ou cinema), antes de chegar ao resultado de uma cena magistral , seja ela cômica ou dramática, passou por todo um caminho pra chegar até ali. Foram várias e várias tentativas, vários experimentos descartados, antes de chegar até a cena final, que vemos na tela ou no palco. Isso tudo levou dias, meses ou até mesmo ANOS pra ficar pronto. De forma geral, nós — que jogamos RPG — só pensamos em produzir estes resultados, sem pensar como podemos efetivamente chegar até eles. Além disso, colocamos muito foco em nossas interpretações individuais e prestamos pouca atenção em como podemos ajudar o resto do grupo a se sentir mais a vontade pra jogar conosco. Por isso, precisamos falar em conteúdos bem básicos.
“RPG não é teatro” — Já ouvi essa frase algumas vezes ao longo dos anos. Geralmente quando tentava introduzir o tópico em discussões.
Essas pessoas têm razão: RPG não é teatro, mas a dinâmica de um grupo de RPG não é muito diferente da dinâmica de um grupo teatral (estou me referindo especificamente grupos teatrais de criação coletiva).
O espaço de jogo, onde o RPG se desenvolve, é acima de tudo um espaço experimental. O desenrolar das relações entre as pessoas do grupo é muito parecido com um ENSAIO, ou um EXPERIMENTO de grupo teatral e de criação totalmente coletiva (há espetáculos que não são de criação coletiva, no RPG isso é praticamente impossível). Em um experimento ou em um ensaio, quando ainda estamos desenvolvendo as cenas — antes de fixar o que será mostrado ou não — o meu compromisso é com o jogo, não com a “““qualidade””” da minha representação/interpretação. Não é preciso fazer uma atuação digna do Oscar. Nossa única obrigação é propor, trazer materiais para serem trabalhados e lapidados. Da mesma forma acontece no RPG.
Analisando as minhas performances, assim como a performance de colegas, tanto em grupos de teatro como em grupos de RPG, surgiu em mim uma inquietação:
Por que dentro do grupo de teatro eu consigo fazer coisas ridículas, propor cenas, rir, chorar, me arriscar, mesmo que o resultado seja “ruim”, enquanto que em grupos de RPG eu não consigo ou tenho dificuldade de fazer a mesma coisa? O que falta?
A resposta foi quase que imediata: EMPATIA!
No espaço do grupo de teatro eu me sinto segura, pois ele foi estabelecido como um local em que o importante não é pensar se o que estou propondo é bom ou ruim. O importante não é se eu estou indo às lágrimas com a minha proposta, ou fazendo todos rirem. Se está bonito ou feio. Por isso, a gente simplesmente se arrisca — e coisas maravilhosas acontecem! A empatia gera confiança pois sei que independente do que aconteça, meus colegas estarão prestando atenção em mim e estarão ali pra me socorrer! A confiança faz com que um grupo seja bem integrado — independente de afinidades ou amizades — e tenha um olhar de cuidado, generosidade e sobretudo acolhimento uns com os outros (e consigo mesmos).
Noto que dentro da esfera do RPG, ainda há uma preocupação significativa em nos qualificar como bons jogadores, ou jogadores ruins, pessoas que interpretam bem, ou que interpretam mal, pessoas que estão no personagem e não estão…propomos muito jogo para nós mesmos (coisas que o meu personagem pode fazer, ou não pode, a voz do meu personagem, etc etc), mas pouquíssimo para o outro (Será que o outro está se sentindo confortável pra arriscar perto de mim? Quais são as limitações do meu colega? Como será que eu posso auxiliar meu colega a superar esses limites?).
Vou dar um exemplo que aconteceu em uma das minhas primeiras aulas de Improvisação, na faculdade:
Estávamos todos em um grande círculo na sala. Cada um, dentro de algumas diretrizes (que não vou citar porque não lembro quais eram), tinha que ir para o meio do círculo e propor uma cena. Fui a última. Eu sempre tive uma dificuldade absurda de improvisar (sério, pra apresentações acadêmicas eu decorava o texto que eu ia dizer, colocava até maneirismos e vícios de linguagem pra deixar mais realista). Até hoje é um dos meus grandes desafios. Eu simplesmente travei. Depois de ver tantas cenas bem elaboradas e pessoas que se portavam com tanta naturalidade…Eu não consegui fazer nada. Deu um branco!
Não sei quanto tempo fiquei parada ali com cara de desespero, mas sem o professor ou qualquer pessoa dizer nada, um colega com o qual eu pouco conversava e não tinha muitas coisas em comum (Obrigada pra sempre, João! ❤ ), se levantou e propôs uma cena pra mim e foi mais ou menos assim:
- Minha filha, a senhorita tá aí com essa cara de assustada e perdida! Que que foi? A srta. Européia nunca viu uma feira não?
- (Eu, meio atônita, olhei pro professor pedindo ajuda. Ele só me disse, tranquilamente “Jogue com ele.”) Ah…é…eu me perdi.-Respondi, sem sotaque, sem maneirismos, sem gestos, sem nada, quase como eu mesma.
- Pois venha cá, que agora você está na Paraíba e eu vou lhe mostrar alguns produtos da nossa terra!
E assim, aos poucos, fui me soltando mais e consegui desenvolver esse experimento com ele. Não foi um experimento grandioso, com interpretação mega trabalhada, mas consegui superar uma dificuldade e ao longo do semestre — e da minha carreira- improvisar deixou de ser uma coisa assustadora. Continua sendo difícil, mas minhas mãos não suam e eu não tenho mais ataques de pânico por causa disso.
Imaginem só se ao invés disso ninguém tivesse vindo me socorrer, ou ao invés de jogar comigo tivessem me empurrado pra fora, me mandado sentar, roubado a cena, ou se alguém viesse me pressionar porque não estou no personagem ou porque estou pedindo ajuda?
Acho que a princípio é muito mais importante — e especialmente com jogadores inexperientes, introvertidos e/ou inseguros — eu enxergar, aceitar e trabalhar com as limitações do meu colega do que pensar se soprar aquela dica ou sugerir algo(subjetiva ou diretamente), ou entrar em cena com ele é metajogo ou não.
A fluência de jogo, a interpretação (por qualquer viés que seja) e a imersão (independente das definições que dermos pra isso) só vão acontecer na medida em todos forem aceitos em suas qualidades e dificuldades — e assim perder o medo e o receio de se expor, de se colocar diante do outro. A empatia com o grupo é fundamental se quisermos conseguir produzir os resultados interpretativos e imersivos desejados. Muita gente até sente um impulso criativo para o próprio personagem, mas acaba se podando, afinal, não queremos nos sentir vulneráveis, como se estivéssemos numa vitrine diante dos nossos colegas de mesa.
Precisamos parar de qualificar as ações interpretativas dos colegas como sendo boas ou não. Cada um oferece o melhor que pode de acordo com o momento. No RPG nós não temos compromisso com um produto finalizado. A dramaturgia do jogo é um experimento em constante mudança, em constante evolução — o resultado final é quando chegamos ao fim do jogo. Entretanto, até lá nada é engessado.
Os exercícios que vou propor são voltados para isso — trabalhar a empatia e a confiança pra criar um espaço de jogo mais confortável para todos, pra nos sentirmos efetivamente parte de um todo. É necessário trazer a consciência do grupo para o fato de que estão ali com o objetivo em comum de contar uma história que está em constante estado de movimento, de experimento.
É importante ressaltar que alguns dos exercícios expostos ao longo dessa série podem ser usados com mais de um propósito e não é preciso segui-los à risca. São apenas sugestões. Vocês podem escolher fazer apenas um, ou fazer todos — não são atividades que levam muito tempo — e então partir para o processo de foco e imersão no mundo e nos personagens (se vocês fizerem algum). Sintam-se a vontade também para adaptar de acordo com as necessidades do grupo. No fim dessa série, espero que vocês tenham ferramentas para montar um set de exercícios para fazer antes de cada jogo — ou para criar os seus próprios!
EXERCÍCIOS:
1- Lugar de onde se vê: Antes de iniciar a sessão, em silêncio, formem um círculo bem aberto, com os jogadores distantes um do outro. Comecem a se observar. Façam contato visual, procurem o olhar uns dos outros. Façam isso em ciclos de até 1 minuto (não precisa cronometrar ou ficar contando, pode ser um tempo aproximado, ou o tempo que julgarem necessário) — o narrador pode ficar encarregado de medir esse tempo e conduzir o exercício. É importante que não se afobem. Se olhem de verdade. Evitem olhar para o chão, para o nada ou para outros pontos da sala que não sejam seus companheiros. A cada ciclo, dêem um passo para a frente, aproximando-se mais uns dos outros. Mantenham o contato visual. Quando o círculo estiver fechado e os jogadores estiverem a uma distância pequena — mais ou menos um ou dois palmos uns dos outros, dêem as mãos e permaneçam assim — de mãos dadas e se observando, por mais algum tempo. Vocês podem encerrar essa dinâmica com algum “grito de guerra”, ou algumas palavras (como a oração do teatro que coloquei no início do texto).
2- Recapitulando: Esse aqui é interessante porque pode ser feito também por pessoas que não jogam em mesas presenciais. Antes de iniciar a sessão, o narrador pede aleatoriamente pra que algum jogador diga um fato que ocorreu ao personagem de outro no decorrer da campanha ou na última sessão (fica a critério de vocês). Isso deve ser feito de forma dinâmica. Assim que o jogador contar o fato, o narrador deve pular para o próximo jogador. Façam isso por quantas rodadas acharem necessárias. Eu sugiro pelo menos três.
Exemplo:
Narrador — “Celestina, diz uma coisa que coisa que aconteceu com a Firmina!”
Celestina- Ela convenceu o dono da loja a nos dar desconto!
Narrador — (Indicando) Carlinhos, o que aconteceu com Celestina?
Carlinhos — Ela fez um acordo com o chefe da guarda! (e assim por diante)
3- O cego e o guia: Este exercício é um clássico do teatro. Ele serve para ensinar a ter responsabilidade com o outro e também a confiar em quem está conosco. Vai precisar de um pouco de espaço — um local onde os jogadores possam se locomover. O ideal é que uma pessoa fique de fora para observar e conduzir o exercício. Divida seus jogadores em duplas. Já em dupla, aquele que será o guia irá se posicionar atrás do cego (como se estivesse formando uma fila). A pessoa que está a frente irá fechar os olhos e o guia irá conduzi-lo a partir de alguns comandos simples:
- Tocar nas costas uma vez: Andar.
- Tocar nas costas de novo: Parar.
- Tocar o ombro direito: Virar para a direita.
- Tocar o ombro esquerdo: Virar para a esquerda.
Deixe eles se conduzindo por dois a três minutos, então peça que todos parem e que os que estavam sendo conduzidos abram os olhos — deixe que percebam o espaço e façam seus comentários. Então inverta as posições. Se o narrador ou o jogador que ficou de fora conduzindo quiser participar, alguém das duplas pode se oferecer pra ser o guia/ser guiado por ele.
Alguns pontos para prestar atenção:
- Não é necessário parar de andar pra virar.
- Não force o colega a andar mais rápido ou devagar, deixe que ele se mova no ritmo que se sentir confortável.
- É normal, no começo, a pessoa que está sendo guiada ficar com medo, abrir o olho, querer tatear em volta. Com o tempo isso passa.
- É importante lembrar que quem está guiando deve se responsabilizar pela segurança do colega.
OBRIGADA A VOCÊ QUE CHEGOU ATÉ AQUI! ❤
Como vocês propõem que se trabalhe a empatia e a cumplicidade dentro de um grupo?
Conseguem pensar em outros exercícios? Testaram os que eu propus? Como foi? Bora trocar ideia!